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MENINO DE RUA

Quando uma crônica tem como personagem principal seu próprio autor - e as minhas, confesso, quase sempre se encaixam nesta situação – corre o risco de se tornar uma autobiografia. Talvez por um egocentrismo muito combatido porém pouco controlado, tais textos acabam se transformando num "flashback" até certo ponto incômodo mas, ao mesmo tempo, inevitável.

Mas, no meu caso, não tem jeito, tanto que ocupo este espaço para entrar no túnel do tempo e fazer com que os ponteiros do relógio partam céleres, só que em marcha-a-ré. Mas, pelo menos desta vez, tal procedimento não será de todo em vão. Hoje, tornarei público algo muito íntimo, que confesso somente aos meus botões, quando muito: já fui um menino de rua.

Não que me envergonhe deste fato: muito pelo contrário, até. É que nos dias de hoje é preciso ter muita coragem para se admitir que, na infância, perambulei pelas ruas a correr atrás da bola e a ferir a pele no asfalto das avenidas ou no cimento das calçadas.

Mas é a mais pura verdade. A rotina, sempre cumprida à risca, era simples: de manhã, escola; depois do almoço, a lição-de-casa, feita com mais rapidez do que a utilizada nas peladas; depois... Ah, depois, várias e ininterruptas horas de grandes clássicos disputados nas principais ruas do bairro do Pari, que me viu nascer, crescer e encher a paciência dos vizinhos com as narrações dos jogos da molecada.

E não pensem que a nos enfrentar havia apenas os três ou quatro meninos do outro time. Que nada! Nossos adversários eram bem mais fortes e perigosos, e se compunham, invariavelmente, de apressados comerciantes, senhoras jovens com seus carrinhos de bebês - e os próprios bebês, claro -, senhoras nem tão jovens com suas sacolas de compras e, pior, automóveis, muitos automóveis, passando ali, rente à nossa linha lateral.

Quando estacionados, serviam-nos de tabela - quantas vezes troquei passes com a porta de um Fusca azul-claro que teimava em ficar parado ali! Parecia que ele tinha especial predileção por aquela casa cor-de-rosa com janelas e portãozinho marrons, onde morava. Mas, se em movimento, tornavam-se os carros perigosos e velozes atacantes, e quem ousasse tentar pará-los corria o sério risco de também parar. No hospital.

E a torcida? Esta merecem parágrafos exclusivos. Até hoje, passados tantos anos daquelas tardes e noites de menino de rua, ainda não consegui entender porque nunca contei com aquela força que vinha das janelas. Justamente eu, que por ser o dono da bola, condição única para que sempre pudesse jogar, organizava as partidas em frente à minha casa e, claro, também às dos meus vizinhos. Ou seja: eu jogava sempre no meu campo, mas isso parecia não agradar muito. Tanto que sempre ouvia a mesma pergunta, em tom de ameaça, vinda das janelas: "Por que você não vai fazer esta bagunça lá na frente das casas desses moleques?".

Não dava pra entender: meus próprios vizinhos, que deveriam ser a minha torcida, prefeririam que meu timinho jogasse sempre fora de casa. Será que era por que passávamos várias horas a gritar como loucos e a correr como poucos, por apresentarmos uns aos outros, diariamente, os novos palavrões que aprendíamos e decorávamos com espantosa facilidade ou por acertarmos suas portas e vidros com as bolas, chutadas quase sempre por tortos pés?

Não sei, e nunca vou saber. É que a casa cor-de-rosa com janelas e portãozinho marrons não resistiu à febre das transformações, à tal força da grana que ergue e destrói coisas belas, como Caetano tão bem cantou. Meus vizinhos, meu timinho e até o Fusca azul-claro também não existem mais. Eles estão apenas na minha memória, e só ganham um sopro de vida porque eu, teimoso como todo saudosista, insisto em vesti-los com as roupas das minhas palavras.

Hoje, quando vejo crianças a mendigar nas esquinas, a pedir esmolas nos faróis, a suplicar às vezes mais por um minuto de atenção ou um gesto de carinho do que por um prato de comida, volto os olhos aos meus tempos de garoto e chego à triste conclusão: não se fazem mais meninos de rua como antigamente.

Márcio Trevisan é jornalista esportivo há 34 anos. Escritor com cinco livros publicados, começou no extinto jornal A Gazeta Esportiva, onde atuou por 12 anos. Editou várias revistas, esteve à frente de vários sites, fez parte de mesas redondas na TV e foi assessor de Imprensa da S. E. Palmeiras e do SAFESP. Há 17 anos iniciou suas atividades como Apresentador, Mestre de Cerimônias e Celebrante, tendo mais de 450 eventos em seu currículo. Hoje, mantém os sites www.senhorpalmeiras.com.br e www.marciotrevisan.com.br. Contatos diretos com o colunista podem ser feitos pelo endereço eletrônico apresentador@marciotrevisan.com.br



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